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Não seja tão rigoroso com a sua lordose

Como fisioterapeuta, ás vezes escuto as pessoas contando “eu tenho lordose” como se isso fosse algo ruim / feio / algum tipo de defeito. Costumo brincar e responder “que bom que você tem, eu também tenho”. Normalmente, nesse momento, a pessoa me olha assustada como se eu também tivesse algum defeito. Começo a explicar um pouco do que está descrito a seguir e expressão de espanto some.

A ideia de que uma lordose seja algo ruim vem de conceitos e técnicas que buscam um alinhamento postural de forma rígida. Há médicos e fisioterapeutas que informam o paciente que ele tem lordose e / ou uma alteração na curvas. O termo estranho parece nome de doença, mas é apenas uma descrição de uma curva côncava. Ou ainda a pessoa passa por uma avaliação postural para entrar na academia, por exemplo e recebe o diagnóstico de “lordose”.  Lordose não é bom nem ruim, as alterações das curvas podem ser.

A coluna possui curvas naturais conhecidas como lordose cervical, cifose torácica e lordose lombar (temos também a cifose sacral). Essas curvas são normais. As alterações que podem acontecer recebem nomes especiais: hiperlordose (aumento da curvatura) hipolordose (diminuição da curvatura) ou retificação (a curva ficou “reta”). E não necessariamente uma alteração das curvas, por exemplo uma hiperlordose lombar, é a causa de dor. Assim como eu posso ter dor sem alteração nenhuma das curvas. Por isso, muitas vezes, ao falar para uma pessoa que ela tem hiperlordose é preciso ter o cuidado de explicar, de forma clara, o que isso significa e não deixar a pessoa alimentar um sistema de crenças relacionada a dor e postura (“você sente dor porque suas costas são assim “ é entendido como “você sente dor por ser defeituosa” e isso não é verdade). É preciso ter consciência do poder de fala enquanto profissional da área de saúde (placebo x noncebo).

 

 

E por que existem essas curvas?

Nascemos apenas com uma curva primária e as outras vão se formando ao longo do desenvolvimento. A curva primária é uma grande cifose (parece um C). As curvas secundárias são as lordoses cervical e lombar.

A curvatura original da coluna ou curvatura primária (parece um grande C)

 

Conforme vamos crescendo e começamos a ficar de pé as outras curvas começam a se formar. E só terminam lá para os 10 anos. Essa informação é importante se pensarmos em questão de desenvolvimento motor. A coluna e outras estruturas ósseas e musculares (musculoesqueléticas) são afetadas pela movimentação e exploração na primeira infância. Por isso é importante incentivar as crianças a brincarem, pularem, subirem e descerem escadas e árvores, enfim, se movimentarem livremente.

 

As curvas garantem uma melhor distribuição de peso e a tornam mais resistente. Uma coluna com as três curvas (lordose cervical, cifose torácica e lordose lombar) é 10 vezes mais resistente do que uma coluna retilínea, como exemplificado na figura abaixo.

Referência Kapandji – Fisiologia articular (um clássico para quem é da área de saúde)

 

Ao andar, correr e pular nosso peso é devolvido pelo solo (segunda lei de Newton: para toda ação há uma reação de igual intensidade e direção oposta). Nosso corpo é capaz de suportar aproximadamente 2x nosso peso corporal ao andar, 8x o peso corporal ao correr e 10x o peso corporal ao pular. Assim nossa coluna vertebral em formato de “S” permite que façamos de tudo um pouco (andar, correr, pular, saltar, nadar, subir, escalar, etc).

Assista ao vídeo abaixo para ter uma ideia da força que uma coluna pode ter (Atenção: não faça isso!)

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A lordose lombar ainda tem grande papel em relação a manutenção da postura bípede (ficar em duas pernas). A curvatura estabiliza o membro superior (braços) sobre os membros inferiores (pernas) ao posicionar o centro de massa do tronco logo acima do quadril. Isso nos permite maior estabilidade e manutenção da postura ereta durante horas.

Em uma perspectiva evolucionária a pelve e a coluna lombar tiveram um papel importante para permitir nossa evolução enquanto espécie.

A pelve corresponde a junção de três ossos (ílio- verde, ísquio – azul e púbis- vermelho), o sacro e cóccix. A pelve é a região de transferência de peso entre o tronco e os membros inferiores (pernas).

 

A pelve humana é mais curta e mais larga do que a pelve de chimpanzés, por exemplo. Veja a imagem abaixo.

A pelve da esquerda é de um chimpanzé e a pelve da direita é humana. As diferenças são bem nítidas, não? Referência Le Huec et al. 2011.

 

A capacidade de ficar em dois pé (bipedalismo) é única em nossa espécie. Somos os únicos animais sem cauda e sem penas que ficam em pé e andam em dois pés. Você já deve ter visto um cachorro pulando nas patas traseiras em busca de alguma recompensa (normalmente comida). Essa é uma postura desconfortável e que se mantida por um longo período pode causar doenças degenerativas como a osteoartrite no cachorrinho.

Os chimpanzés, por exemplo, conseguem ficar em postural bípede usando os braços para contrabalancear a posição e até andam dessa maneira. Mas nosso amigo primata não consegue manter a posição por muito tempo e nem ficar em um pé só sem uma grande compensação (inclinar o tronco para o lado). Isso acontece porque a pelve deles é mais alta e o ílio é virado para trás e a musculatura glútea – que se insere no ílio- deles faz a extensão do quadril (estender a perna para trás). Enquanto em nós, humanos, o ílio é mais lateralizado e a musculatura glútea ajuda na estabilização do tronco quando um só pé está apoiado no chão.

A imagem ilustra o ílio mais posterior do chimpanzé e a musculatura glútea que apenas estende a perna enquanto nos humanos o glúteo ajuda na estabilização de tronco. Referência Lieberman et al. 2007

 

É graças à essa alteração anatômica que são possíveis posições como essa:

 

E por que tal o bipedalismo é tão importante?

Há teorias que suportam que é graças a capacidade de locomoção em dois pés que chegamos onde estamos hoje em questão consciência, cultura e sociedade. Muito antes do cérebro de nossos ancestrais se desenvolver por eles começarem a comer alimentos cozidos (após dominar o fogo) e antes deles criarem ferramentas, eles já eram bípedes.

As curvas da coluna vertebral permitem que uma pessoa fique ereta com um mínimo de recrutamento muscular. A cabeça logo acima da caixa torácica e em cima do quadril permite uma transmissão de força através dos ossos fazendo com que a ativação muscular para manter essa postura seja pequena. Nossos amigos primatas recrutam muito a musculatura das costas para manter a postura bípede já que, por não possuírem tais curvas, eles ficam em constante projeção anterior e com maior contração muscular.

Referência Le Huec et al. 2011

 

Andar em dois pés libera os membros superiores (braços) para se moverem livremente e alcançar coisas no alto, como frutas (os nossos amigos chimpanzés também ficam em duas patas para alcançar frutas). E alguns milhões de anos depois de surgir o bipedalismo nossos parentes distantes começamos a produzir ferramentas.

As adaptações da nossa coluna, pelve e pés (nós temos arco plantar, coisas que os chimpanzés não possuem) permite que o andar em duas pernas seja muito econômico energeticamente. Um chimpanzé gasta quatro vezes mais energia para andar em quatro ou duas patas (a marcha muito lateralizada, pernas curtas e semi-flexão de joelhos e quadris para andar recruta mais músculos = maior gasto energético). Essa é uma vantagem que permite andar por uma distância maior até encontrar comida.

Nem tudo foram flores no processo de assumir a postura bípede. Para as mulheres grávidas o centro de massa foi deslocado para frente e isso aumenta o desequilíbrio e recruta mais a musculatura dorsal, aumentando a lordose lombar durante a gestação, o que costuma causar dor nas costas em gestantes.  Esse mecanismo que é conhecido hoje (aumento da lordose lombar na gestação) foi um mecanismo de adaptação perpetuado por seleção natural como uma ferramenta de tentar trazer o centro de massa de volta para a cabeça do quadril. Mas esse mecanismo parece que só foi possível graças a uma mutação genética que aumentou o número de vértebras lombares de três para cinco (chimpanzés possuem apenas três vértebras) e que foi perpetuada por seleção natural ainda no tempo dos Australopitecos cerca de 3,9  milhões de anos atrás

Em a. é representado um chimpanzé não grávido e em b. o chimpanzé grávida (é possível notar as três vértebras lombares). Em C. é representado uma mulher não grávida e em d. uma mulher grávida com pouco mecanismo de compensação (note que o círculo – que representa o centro de gravidade- passa à frente do quadril) e em e. é representado uma mulher grávida com o mecanismo de compensação de hiperlordose (note o centro de gravidade passando sobre o quadril) Referência: Lieberman et al. 2007

 

Por isso não seja tão rigorosa com suas curvas da coluna vertebral. Elas são o resultado de milhões de anos de mutações, adaptações e seleção natural.

 

Referências:
BRAMBLE, D. M.; LIEBERMAN, D. E. Endurance running and the evolution of Homo. Nature, v. 432, n. 7015, p. 345–352, 18 nov. 2004.
LE HUEC, J. C. et al. Equilibrium of the human body and the gravity line: the basics. European spine journal : official publication of the European Spine Society, the European Spinal Deformity Society, and the European Section of the Cervical Spine Research Society, v. 20 Suppl 5, n. Suppl 5, p. 558–63, set. 2011a.
LE HUEC, J. C. et al. Pelvic parameters: origin and significance. European spine journal : official publication of the European Spine Society, the European Spinal Deformity Society, and the European Section of the Cervical Spine Research Society, v. 20 Suppl 5, n. Suppl 5, p. 564–71, set. 2011b.
WHITCOME, K. K.; SHAPIRO, L. J.; LIEBERMAN, D. E. Fetal load and the evolution of lumbar lordosis in bipedal hominins. Nature, v. 450, n. 7172, p. 1075–1078, 13 dez. 2007.

 

Sugiro também o livro “A história do corpo humano” de um dos autores citados acima, Daniel E. Lieberman. É uma leitura mais fácil e agradável e em um capítulo fala mais sobre nossos antepassados de milhões de anos.

 

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